O tempo é o coração da existência. [Abraham Joshua Heschel]

No primeiro capítulo da Bíblia, o ser humano recebe uma missão diretamente de Deus: “Cresçam! Reproduzam-se! Encham a terra! Assumam o comando! Sejam responsáveis pelos peixes no mar e pelos pássaros no ar, por todo ser vivo que se move sobre a terra” [Gn. 1:28, versão A Mensagem]. Devemos assumir o comando do mundo das coisas, nos responsabilizar por tudo que existe na criação. Somos chamados a encher e dominar o espaço.
Logo depois de transmitir a missão, Deus tira um dia para descansar do seu trabalho de encher a terra com tudo que há nela. Ele já começa dando o exemplo para os seres humanos: vocês vão cumprir sua missão de trabalhar e se responsabilizar pelo mundo, mas não devem esquecer de parar de vez em quando. Tem coisas que não devem ser conquistadas, coisas que não são coisas.
“O poder que alcançamos no mundo do espaço termina abruptamente na fronteira do tempo”, escreve o rabino Abraham Joshua Heschel em seu clássico O Schabat. Podemos trabalhar para conquistar qualquer coisa, mas o tempo é inconquistável. “Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida?” [Jesus em Mt. 6:27]
O mundo do espaço está no centro da missão humana em Gênesis 1. Mas há um perigo de focar só nele e se esquecer de que o Deus da Bíblia resolveu santificar o tempo, e não o espaço. Ao invés de separar um lugar especial para sua adoração, Ele separou um dia. Para Deus, o tempo é tão importante quanto o espaço.
O perigo começa quando, para ganhar poder no reino do espaço, pagamos com a perda de todas as aspirações no reino do tempo. Há um reino do tempo em que a meta não é ter, mas ser; não possuir, mas dar, não controlar, mas partilhar; não submeter, mas estar de acordo. [Heschel]
Heschel percebe que o problema não está no mundo, mas sim no nosso relacionamento com ele. “Há felicidade no amor ao trabalho, há desgraça no amor ao ganho.” Queremos ganhar, possuir, controlar, submeter: nosso relacionamento com a criação virou uma dinâmica de opressão. “As coisas do espaço estão à mercê do homem […] elas não são por demais sagradas para serem exploradas.”
Esse substantivo esquisito, “coisa”, que pode definir qualquer coisa, é uma categoria que tiraniza nossos pensamentos, segundo Heschel. Ele explica que o hebraico antigo, com o qual o Antigo Testamento foi escrito, nem tinha um equivalente para “coisa”. “Realidade, para nós, é coisidade, e consiste de substâncias que ocupam espaço", de acordo com seu diagnóstico. O problema nessa visão da realidade é que deixamos de enxergar tudo aquilo que não é coisa, ou tentamos coisificar aquilo que não pode ser reduzido a essa palavra polivalente. Já que podemos subjugar as coisas, tentamos transformar Deus em uma delas.
Quantas vezes eu não ouvi na igreja que a “coisa mais importante da sua vida deve ser Deus”. Claro, é um vício de linguagem, mas que demonstra algo mais profundo: pensamos em Deus como uma coisa no espaço, que pode ser moldada e confinada. Esquecemos que “a meta mais elevada da vida espiritual não é acumular riqueza de informação, mas arrostar momentos sagrados”. Deus não é algo que manipulamos, mas Alguém com quem passamos nosso tempo.
Não dá para comprar Deus, nem ter o Criador como temos uma casa ou um carro. Somos chamados a assumir o comando do mundo, mas é o mundo que Deus criou. O perigo de gastar todo nosso tempo tentando dominar esse mundo é que nos esquecemos que Deus não é uma das coisas que podem ser dominadas. Deus não está à nossa mercê, pronto para ser explorado.
O Deus que não se deixa dominar está te chamando para um encontro: não nas coisas, mas no tempo.