Houve sangue
Sobre religião e opressão
Mas agora, em Cristo Jesus, vocês, que antes estavam longe, foram aproximados mediante o sangue de Cristo. (Efésios 2:13)
“Sangue Negro” (no original “There Will Be Blood”, algo como “Haverá Sangue”), filme do Paul Thomas Anderson de 2007, é (um)a história dos Estados Unidos. Daniel Plainview, interpretado majestosamente por Daniel Day-Lewis, é o empresário que começa do zero, monta sua empresa, desbrava terras antes desconhecidas e alcança a posição de magnata do petróleo. Ele fez por merecer e conseguiu. Todo seu império veio do seu esforço. Mais ou menos.
Condições de trabalho precárias que levaram alguns funcionários à morte eram a regra nos empreendimentos de Plainview. Vemos o empresário, que se orgulha de ter uma “empresa de família” onde seu filho, só usado para conquistar e ludibriar os outros, é seu “sócio e parceiro”, trapacear famílias pobres, que não sabem das possibilidades financeiras do petróleo debaixo de seus pés, e fazer promessas vazias de melhorias e prosperidade futura para a comunidade quando, na verdade, a única coisa que prospera é seu próprio império.
Plainview encontra um parceiro curioso no meio de sua jornada para explorar petróleo na Califórnia. Eli Sunday (interpretado por Paul Dano, que está tão bom quanto o veterano DDL) é o “pastor” de um grupo que ele chama de “Igreja da Terceira Revelação". Essa “Terceira Revelação”, qualquer que seja ela, claramente não é o Evangelho. Eli afirma que o Espírito fala com ele por meio de um sussurro suave, mas se expressa com gritos, violência e exorcismos bizarros e performáticos. Em sua teologia, “Deus não salva homens estúpidos”. E o que é ser estúpido? É não querer lucrar.
Eli vê, no petróleo, uma chance de conseguir mais dinheiro para seu projeto de manipulação religiosa, uma oportunidade de exercer poder sobre as pessoas. Por isso, ele se associa a Plainview. A religião dá as mãos ao capitalismo para construir o país dos homens livres.
Plainview ridiculariza e destrata Sunday desde cedo. Mesmo assim, o pregador continua ao seu lado, porque é ali que está o dinheiro. O filósofo da teoria crítica Theodor Adorno pensou que a religião, para existir hoje (ou em sua época, no século passado), precisava “migrar pelo profano”. No filme de PTA, isso fica claro como a luz do dia: os sacerdotes soltam a mão de Deus e apertam a mão de um sistema baseado em destruição e exploração que deixa os detentores da imagem e semelhança de Deus jogados e pisados pelo caminho. Não contentes em viver a missão que Deus nos deu, ansiosos para termos importância e impacto, abandonamos o sacro e nos jogamos no profano. Não precisa se preocupar com o mundo entrando na igreja; ela se joga no mundo quando vira instrumento de opressão.
Ao fim do filme, o sacerdote nega a essência de sua crença para depositar sua fé inteiramente no empresário, no Capital. E o que acontece? A religião não ganha nada ao se associar com o opressor, em nenhum momento da história. Eli Sunday sai ridicularizado, destruído. A religião se entregou ao reino de César, ao Império, e, enquanto foi útil para explorar os outros, foi tolerada. Agora, ela recebe o mesmo tratamento: depois de ser explorada até a última gota, é largada às traças.
Na base do sistema religioso do capitalismo — sistema religioso porque, como percebeu o escritor David Foster Wallace, todos esses sistemas giram em torno de adoração, e todos estamos adorando algo — (e de todos os sistemas de opressão que vieram antes e talvez venham depois) está a violência. Violência sem sentido, cega e vingativa. Na tradição cristã, depositamos nossa fé e esperança em um ato de violência, a crucificação de Cristo, que salvou e acabou com a necessidade de exploração, tortura e desumanização. É violência expiatória. O sangue é derramado por um motivo (“perdão de pecados”, Mt. 26:28; purificação da consciência, Hb. 9:14; “redenção”, Ef. 1:7; meio de aproximar as pessoas de Deus, Ef. 2:13). Quando esquecemos desse motivo, acabamos nos aliando a outros deuses, falsos, que fazem uma paródia de cristianismo. A violência continua ali, mas onde está a expiação? É só violência até perder de vista, e o sangue dos nossos irmãos está em nossas mãos.


