Se nos fosse possível ver além do alcance do nosso saber, e ainda um pouco além da obra preparatória do nosso pressentimento, talvez suportássemos as nossas tristezas com mais confiança do que nossas alegrias. Pois elas são os instantes em que algo de novo penetrou em nós, algo desconhecido; nossos sentimentos se calam em um acanhamento tímido, tudo em nós recua, surge uma quietude, e o novo, que ninguém conhece, é encontrado bem ali no meio, em silêncio. [Rainer Maria Rilke]
Tiago começa sua carta para a igreja de uma maneira esquisita, contraintuitiva. Essas são as palavras do apóstolo e líder da comunidade cristã em Jerusalém:
Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma. [Tiago 1:2-4]
Tiago não é o primeiro a falar que devemos ser alegres mesmo na tristeza. Jesus encorajava seus seguidores a se sentirem felizes quando perseguidos (Mt. 5) e Paulo diz que os servos de Deus devem estar “entristecidos, mas sempre alegres” (2 Co. 6:10). Como é possível a alegria e a tristeza conviverem de maneira tão próxima nas ideias dos autores bíblicos?
Parece que a alegria sobre a qual eles escrevem não é um sentimento, uma emoção que surge em decorrência de uma circunstância ou situação. Para os primeiros cristãos, as circunstâncias definitivamente não eram as melhores: perseguição e pobreza eram a ordem do dia em um império que agia e existia em completa antítese ao reino de Deus.
A alegria da qual eles falam, então, começa a parecer muito mais com uma decisão. A passagem do poeta alemão Rainer Maria Rilke que eu escolhi para abrir a Desendoidecendo de hoje me toca bastante desde a primeira vez que a li, em 2020. De acordo com ele, a tristeza pode servir como o estopim para algo de novo e especial dentro de cada um. Se soubéssemos disso, passaríamos pelas provações com mais confiança. Talvez confiança de que aquilo não é completamente em vão. Uma fé de que, mesmo que o que esteja acontecendo seja sem sentido e absurdo, essa provação vai produzir perseverança, como escreve Tiago. O sofrimento em si não tem valor, mas a maneira como lidamos com ele, a confiança da qual Rilke escreve, pode definir a experiência para além de qualquer consequência ou circunstância.
Para encarar a tristeza com alegria, é preciso fé, mas também é preciso sabedoria, como Tiago explica no verso 5 do capítulo 1. Sofrer não é bom, mas é inescapável. Em algum momento ou outro, o sofrimento vem, a tristeza chega e não há nada que possa te preparar ou proteger. Nessa hora escura da noite, a sabedoria, o nascimento de algo novo dentro de mim pode ser o gancho que me prende à alegria.
E eu preciso de um gancho: alegria não é algo fácil de conquistar ou manter. Não é a atitude racional ou intuitiva frente à tristeza. Ela é uma decisão de fé: mesmo que não haja motivo, eu continuo alegre e fiel. Por quê? Alegria cristã é esperança na vida de Jesus e em seu sacrifício por nós, para redenção e para alegria completa no futuro. Encarar a tristeza com sabedoria e alegria é estar aberto para coisas novas, como escreveu Rilke, e também estar aberto para quando Deus fará novas todas as coisas.
P.S.: essa música maravilhosa aqui fala muito melhor desse tema do que eu conseguiria imaginar. É o poder da poesia e de um violão afinado em ré aberto.
Gosto da percepção de Alegria desenvolvida por Lewis, como a presença da Graça nos fatos da vida, sejam eles de quaisquer natureza sentimental. Acho que essa percepção serve nesse texto também.
Ah, e essa dos Arraes é uma de minhas músicas preferidas! Obrigada, Deus te abençoe.