Enquanto estavas observando, uma pedra soltou-se, sem auxílio de mãos, atingiu a estátua nos pés de ferro e de barro e os esmigalhou.
Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro foram despedaçados, viraram pó, como o pó da debulha do trigo na eira durante o verão. O vento os levou sem deixar vestígio. Mas a pedra que atingiu a estátua tornou-se uma montanha e encheu a terra toda. [Daniel 2:34 e 35]
Em Daniel 2, o rei Nabucodonosor sonha com uma bela estátua dividida em metais diferentes, de acordo com a parte do corpo. Cada um dos metais representaria um reino diferente. Ao final do sonho, uma pedra cortada sem auxílio de mãos humanas atinge a estátua pelo pé e despedaça todos os poderosos metais que compunham a escultura. Essa pedra cresce até se tornar uma montanha que “encheu a terra toda”.
O que me interessa mais aqui é a pedra que destrói tudo, que Daniel depois explica que simboliza “um reino que jamais será destruído”, estabelecido pelo Deus dos céus. A visão é muito clara em dizer que ela é cortada “sem o auxílio de mãos”.
Ou seja, o Reino de Deus é instituído quer a gente queira, quer não. Não podemos fazer nada com nossas mãos humanas para parar ou incrementar o plano maravilhoso de Deus de recriar tudo à luz de Sua justiça e de Seu amor.
A única coisa que pode destruir os grandes reinos do mundo é o poder de Deus. Aqui que as coisas se complicam.
A tentação de poder que rodeia o ser humano existe sempre no nível pessoal, de não querer entregar o comando da vida para Deus, mas também em um nível organizacional, quando as instituições que compomos (como a igreja) tomam para si uma prerrogativa de domínio que não é humana e sim divina.
Não somos chamados para ser a pedra que vai acabar com tudo. Um dos problemas comuns de nos colocarmos nessa posição de juízes e executores da justiça de Deus é que normalmente erramos o alvo.
Nos últimos 7 anos, a igreja evangélica brasileira no geral tomou parte numa guerra cultural fabricada por interesses políticos e financeiros que tinha como objetivo “devolver o Brasil a Deus”.
O problema, claro, é que o Brasil nunca deixou de ser de Deus. Mas a igreja se deixou levar por uma tentação de poder que não condiz com a sua missão dada por Deus. Nós quisemos ser a pedra que iria destruir o ‘marxismo cultural’, a ‘ideologia de gênero’ e outros espantalhos ideológicos que não fomos chamados a combater. Tudo isso para estabelecer o nosso reino, não de Deus, à força sobre os outros.
O bolsonarismo usou a igreja para seus próprios propósitos políticos. Não deu tão certo nas urnas em 2022, mas o efeito colateral que ele deixa entre as fileiras de membros continua firme e forte: a ideia de que é nosso papel construir uma sociedade “cristã” a base da força, da lei e da coerção, ignorando a graça e o amor que somos chamados por Jesus a compartilhar.
Esse perigo não está só no bolsonarismo, mas em todo e qualquer movimento que promete à igreja outro meio de alcançar poder e influência que não seja o meio de Jesus: fazendo discípulos e esperando Aquele que vai cortar a pedra que vira montanha e enche toda a terra.
O Reino não é nosso, é de Deus. Quando queremos construí-lo do nosso jeito, ele acaba perdendo o ‘R’ maiúsculo e virando só mais uma estrutura de opressão e violência. Dessas o mundo já está cheio.
P.S.: fiquei a semana inteira pensando em como escrever sobre a Débora Rodrigues, uma das golpistas que invadiu a Praça dos Três Poderes para incitar uma abolição violenta do Estado de direito brasileiro. Ela é, como eu, adventista do sétimo dia. Pensei, pensei e não sei o que dizer sobre o assunto. É muito triste, mesmo. Lembrei desse texto de 2022 e republiquei hoje, com algumas edições. Uma igreja que foca tanto em estudar profecia acaba ignorando as lições mais óbvias dos textos.