"Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados.” (Ez. 16:49 NVI)
Encontrei um amigo na última sexta-feira que me falou um negócio no qual eu tenho pensado a semana toda. Ele disse que “o pecado de Sodoma foi o neoliberalismo”. Mas como assim, se o neoliberalismo não tem nem 50 anos direito e Sodoma e Gomorra foram destruídas uns muitos mil anos atrás?
Ele explicou o que queria dizer usando o texto de Ezequiel 16, quando o próprio Deus diz qual foi o pecado de Sodoma que acabou levando à sua destruição. Sodoma e seus habitantes eram arrogantes, com pratos cheios de comida, mas sem nenhuma preocupação de dividir o excesso com os pobres e os necessitados.
O texto continua, no verso 50, dizendo que os habitantes da cidade foram orgulhosos e teimosos, fazendo o que Deus detesta.
“Sodomia” é uma expressão com etimologia óbvia. A palavra se refere à história de Sodoma, e significa sexo anal, especialmente em um contexto de homossexualidade. Até hoje, o consenso evangélico é de que o pecado de Sodoma foi a homossexualidade, e isso seria aquilo que é repugnante aos olhos de Deus, o que Ele detesta.
Depois dessa interação com o amigo, eu voltei a pensar nisso, indo até o texto de Gênesis 19, onde a história da destruição de Sodoma e Gomorra é contada. É interessante que por tanto tempo tenha sido tão óbvio que o pecado da cidade fosse a homossexualidade, porque isso não fica claro no texto, pelo menos não para mim.
Para quem não conhece a narrativa, dois anjos vão visitar Ló, sobrinho de Abraão, em Sodoma. Quando chega a noite, todos os homens da cidade cercam a casa de Ló e pedem pelos homens, com o intuito de abusar deles sexualmente.
Na interpretação comum, o problema não é a falta de hospitalidade, a violência, o abuso sexual… o problema é que são homens com homens.
É interessante que a Bíblia tenha uma descrição tão clara do pecado de Sodoma como a falta de caridade e a arrogância, e ainda hoje uma grande parte dos evangélicos não vê essas coisas como perigos tão grandes quanto a “ideologia de gênero”, sendo que a injustiça social é um problema tão presente e urgente.
O neoliberalismo é o status quo da economia mundial desde os anos 80. Nos últimos 50 anos, o mundo viu um crescimento de produção e de riqueza exponencial, impulsionado pelos ideais neoliberais implementados por governantes da direita a centro-esquerda, como Ronald Reagan e Bill Clinton nos EUA, Margaret Thatcher e Tony Blair no Reino Unido.
Um foco maior no capitalismo financeiro e o poder de lobby de companhias multinacionais influenciou constantemente nas políticas públicas das maiores economias do mundo, deixando de lado o ideal do Estado de bem-estar social levantado depois da Segunda Guerra.
A riqueza aumentou, é verdade, e isso beneficiou todas as camadas da sociedade, até as mais pobres. Mas a desigualdade também aumentou de maneira exponencial, e agora vemos dados sinistros como o famoso “1% dos mais ricos detém mesma riqueza dos 99% restantes”.
Esse sistema já mostra suas falhas de funcionamento próprias, como na crise de 2008. Por quanto tempo a especulação financeira e a exploração do meio ambiente podem continuar às mãos do livre mercado?
Falar de economia é tabu. A maior parte do debate que a gente tem sobre o jeito que o mundo do dinheiro funciona hoje é marcada por uma desesperança, sem conseguir enxergar alternativas melhores, ou indo de volta para alternativas passadas que não funcionaram, como a planificação soviética.
Eu não sou especialista em economia. Mas o mundo em que a gente vive hoje se parece muuuito com o pecado de Sodoma descrito por Deus, e ninguém precisa ser especialista para perceber isso. Os pratos dos ricos estão cada vez mais cheios, enquanto pobres e necessitados continuam passando fome e morrendo de frio nas ruas.
Louis-Joseph Lebret foi um economista. Um economista e um padre. Para ele, não havia tabu em discutir economia em um contexto religioso. Na verdade, ele baseou toda sua teoria em uma união da teologia com a teoria econômica, defendendo princípios mais humanos na maneira que regemos nossa economia.
A história de Sodoma e Gomorra termina com a destruição das cidades. A injustiça perdeu. Espero ansioso o dia em que as nossas Sodomas vão cair, também.
Enquanto o dia da libertação completa não chega, vamos vivendo o Reino da maneira que podemos e conseguimos aqui. E, quando aplicamos o Reino para nossa vida econômica, não podemos tolerar injustiça e desigualdade. Existem jeitos diferentes de se pensar em como acabar com as mazelas sociais, e essas diferenças são importantes. Agora, só achar que as coisas estão boas do jeito que estão não rola. Cuidado para, quando o fogo descer do céu para consumir a cidade, você não estar tão preocupado em ganhar dinheiro que perdeu o aviso de fugir.
Outro dia um pastor que defende o neoliberalismo falou, no púlpito, que é ingenuidade achar que políticas econômicas voltadas para diminuição de desigualdade vão funcionar, quanto as profecias apontam para um crescente caos social. A solução proposta é enterrar nossas cabeças na Bíblia e EP e ignorar esse caos social que não nos diz respeito até a volta de Jesus, algo muito parecido com as justificativas religiosas para grandes atrocidades da história, como o nazismo e a escravidão. Tirar de nós a responsabilidade por quem sofre ao nosso redor é a melhor receita satânica para afastar o Espírito Santo da Igreja.