Zelota e publicano
Sobre pensar diferente mas ser um em Cristo (e sobre as eleições, como tudo nessa semana)
“Chamando seus doze discípulos, deu-lhes autoridade para expulsar espíritos imundos e curar todas as doenças e enfermidades. Estes são os nomes dos doze apóstolos: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão; Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; Simão, o zelote, e Judas Iscariotes, que o traiu.” (Mateus 10: 1-4)
Nessa apresentação dos discípulos de Jesus, poucos têm descrições além do nome. Alguns são identificados por suas famílias, um por seu papel na morte de Jesus e dois por suas identidades político-sociais: Mateus, publicano, e Simão, zelota.
Não sabemos exatamente quando os zelotas se organizam, mas isso provavelmente aconteceu depois do ano 60 d.C., ou seja, depois dos acontecimentos relatados nos Evangelhos. Então, Simão talvez tenha se tornado zelota depois do seu tempo com Jesus. Isso não é o que importa para nós agora. O que importa é: quem eram os zelotas?
Grupo dissidente do movimento dos fariseus, os zelotas achavam os fariseus “isentões” por aceitar o governo dos saduceus, que eram os principais sacerdotes da época, e a ligação deles com Roma. Eles eram completamente anti-Roma. Acreditavam que as coisas precisavam ser decididas na base da força e que você não deveria se misturar com Roma sob nenhuma circunstância. Eles eram cidadãos de bem que achavam que precisavam fazer justiça contra os romanos com as próprias mãos.
Mateus era publicano. Publicanos eram cobradores de impostos para Roma. Eles podiam trabalhar como uma alfândega, cobrando taxas muita vezes exorbitates e exageradas de quem saía e entrava das cidades. Corruptos em muitos momentos, a figura do publicano representava o judeu traidor, aquele que se associa com o opressor para poder sair lucrando. Ninguém era mais odiado pelos zelotas do que os publicanos, exatamente porque eles representavam os judeus que se venderam para Roma.
Zelotas e publicanos entre os discípulos de Jesus. É interessante perceber que o chamado ao discipulado não apaga suas identidades pessoais. A diferença entre eles não é apagada por seguirem a Cristo. Eles continuam sendo descritos como zelotas e publicanos pelos evangelistas. Esses são homens com visões de mundo econômicas e políticas completamente diferentes e opostas que andaram juntos, comeram juntos e aprenderam juntos aos pés de Jesus. O amor de Deus e o Espírito Santo alcançam a todos e usam a todos, sem se importar com as diferenças, mesmo que pareçam irreconciliáveis.
Jesus pega os opostos que mais se odiavam e coloca eles para andarem juntos por três anos e meio. Eles não se tornaram iguais ao fim desse tempo; de novo, continuaram sendo descritos como publicano e zelota. O Reino de Deus não é uniformizador, mas sim unificador. O que não é pecado, como visões políticas e econômicas diferentes, pode e deve coexistir na igreja porque Deus vai nos usar como nós somos, do mesmo jeito que usou um zelota e um publicano.
Domingo temos o primeiro turno da eleição. Precisamos ter em mente que o que nos divide e diferencia não precisa ser motivo de briga. Todos são alcançados pelo amor de Deus e todos são usados por Ele, não importa a opinião política e econômica. O amor de Deus respeita nossa diversidade e nos usa por meio das nossas diferenças.
Ao entrar no Twitter hoje, me deparei com um fio interessante do jornalista Glenn Greenwald. Ele, que não é cristão, escreveu sobre como o Cabo Daciolo tem ajudado ele e sua família enquanto seu marido, o deputado federal David Miranda, está internado na UTI (orem por ele!). Daciolo tem orado com David, tem se feito presente na rotina da família demonstrando seu apoio, tudo sem buscar publicidade. Podem falar o que quiserem do Daciolo, mas não que ele não foi um exemplo de cristão aqui.
Glenn escreveu, simbolizando o quanto a ação de Daciolo falou mais do que sua posição política:
“Claro que a política importa. Importa muito. É trabalho de David, e meu.
Mas se a política leva você a odiar seus vizinhos e todos que veem o mundo de forma diferente - em vez de ficar com raiva dos centros de poder - está desempenhando um papel muito distorcido em sua vida.”
Eu acredito que isso está muito em linha com o jeito de Jesus de pensar. Hoje temos igrejas divididas, muito por causa da atuação horrenda e abertamente partidária de tantos “líderes” e “pastores”. Ao santificar o voto, transformamos nosso irmão em inimigo porque ele não vota de acordo com o que pensamos. Fomos levados a odiar nossos vizinhos, ao invés de direcionar nossa raiva aos governantes e aos poderes investidos.
É claro que o Evangelho nos transforma e não nos deixa como fomos encontrados. Tanto Simão quanto Mateus provavelmente tiveram que deixar elementos de suas identidades políticas (ou ideologias, se preferir) depois de confrontados com a mensagem do Reino de Deus, mas eles continuaram pensando diferente e sendo diferentes (e continuariam votando diferente se a Galileia do primeiro século fosse uma democracia representativa).
Existem coisas maiores do que a maneira como nós votamos. Existe o amor. E o amor supera qualquer diferença ideológica que possa estar nos separando hoje. Jesus ordenou amar o inimigo. Para mim, Eduardo Ribeiro Lima, esse inimigo hoje é o presidente Bolsonaro. E é muito, muito difícil seguir a ordem de Jesus.
A descrição desta newsletter aqui no Substack é “reflexões e desabafos sobre a vida cristã”. Agora vem o momento do desabafo. Eu voto diferente da maioria dos evangélicos nesta eleição. Voto por motivos de preferência política e econômica primariamente, não porque Deus assim ordenou. Deus nos deu liberdade para agir de acordo com nossa consciência, amém. “Onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade” (2 Coríntios 3:17). Somos livres para votar.
Mas, por causa do jeito que eu penso política, muitas vezes me sinto excluído da mesa, como se não fosse crente o suficiente. Não sou só eu que estou me sentindo assim: muita gente sente falta de comunidade, de família, mesmo, depois de tantas brigas e rupturas por causa de política. Cadê a liberdade na prática?
A gente vota diferente. Somos zelotas e publicanos. Mas existe algo que é maior que todos nós, e isso nos une em um só corpo:
“Há um só corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual vocês foram chamados é uma só; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos.” Efésios 4:4-6
Por favor, não exclua ninguém do corpo. Quando Jesus inaugura o Reino, Ele deixa a porta aberta para QUALQUER UM ENTRAR. Zelotas e publicanos, todos têm espaço nesta mesa para sentar, comer, conversar, opinar e fazer parte. Que assim seja entre nós.
P.S.: como tudo que é bom, a ideia dos zelotas e publicanos eu peguei de outro lugar. O querido pastor Edson Nunes Jr. falou disso no Conversas Pastorais da IBAB e me deixou pensando por um bom tempo. Obrigado por todos os ensinos, pastor <3